Vamos falar a verdade? Não aquela versão polida e filtrada para o Instagram, mas a verdade crua, por vezes desconfortável, mas profundamente libertadora sobre o que significa realmente construir um negócio criativo em Portugal.
Quando partilhei nas redes sociais que estava a lançar o meu estúdio criativo, a caixa de mensagens encheu-se de “Parabéns!”, “Que coragem!” e o inevitável “Vais arrasar!”. O que ninguém viu foram as noites de insónia, a planilha Excel do terror com previsões financeiras ou as vezes em que questionei seriamente as minhas decisões de vida enquanto tentava decifrar o que raio é um “Anexo SS da Segurança Social”.
Este artigo é o backstage tour que eu gostaria de ter lido antes de embarcar nesta aventura. Vamos falar dos bastidores, sem filtros nem pretensões.
O mito do momento perfeito para começar
“Quando tiver mais dinheiro guardado”, “quando tiver mais experiência”, “quando o mercado melhorar”, “quando terminar este curso”… Reconheces estas frases? Eu repetia-as como um mantra durante anos.
A verdade? Nunca existe o momento perfeito. O meu veio depois de oito anos em papéis corporativos, quando percebi que estava a adiar a vida que realmente queria sob o pretexto de “só mais um ano de experiência”.
O que aprendi? Começar é 80% do caminho. Os detalhes resolvem-se no percurso. O primeiro cliente chega muitas vezes de onde menos esperamos, e cada projeto traz consigo respostas para perguntas que ainda nem sabíamos que tínhamos.
A burocracia portuguesa: um caso de amor e ódio
Queres um verdadeiro teste à tua determinação empreendedora? Tenta navegar pelo labirinto burocrático português com a tua sanidade intacta.
Entre abrir atividade nas finanças, entender o regime de IVA mais adequado, seguros de responsabilidade civil, proteção de dados, faturas com ou sem IVA, recibos verdes, e a magia negra que é calcular quanto guardar para impostos… houve dias em que me senti mais contabilista do que criativa.
Dica não-solicitada #1: Arranja um bom contabilista desde o início. Sim, é um custo adicional que parece desnecessário quando estás a começar, mas acredita em mim — o que pagas ao contabilista, poupas em ansiedade e potenciais multas.
Dica não-solicitada #2: Os cursos da Sofia Rocha e Silva podem ser um life-saver numa fase de início de vida de freelancer.
A solidão não falada do empreendedorismo criativo
Uma das coisas que menos esperava? A profunda solidão que por vezes acompanha o trabalho independente. Depois de anos em escritórios, onde as ideias brotavam de conversas casuais na copa e havia sempre alguém para um café quando o cérebro precisava de uma pausa, a transição para dias inteiros só comigo e o meu computador foi… desafiante.
Não me interpretem mal — adoro ter controlo sobre o meu tempo e espaço. Mas há dias em que a única interação social que tenho é com o estafeta da Glovo que me traz o almoço, e começo a questionar se ainda sei formar frases completas quando falo com humanos reais.
Encontrei algumas soluções:
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- Trabalhar ocasionalmente de cafés ou espaços de coworking
- Agendar chamadas de trabalho para os dias mais solitários
- Criar uma rede de outros freelancers para partilha regular de experiências
- Participar em eventos da indústria, mesmo quando a minha introversão implora para ficar em casa
A realidade financeira: montanhas russas e sopas de pedra
Posso agora confirmar: a instabilidade financeira dos primeiros tempos é tão real quanto dizem. Tive meses com faturação que me fez questionar porque não tinha tomado esta decisão mais cedo, seguidos por períodos tão secos que comecei a reconsiderar todas as minhas escolhas de vida.
A realidade é que construir uma clientela estável leva tempo — mais tempo do que gostaria de admitir. E mesmo quando parece estável, basta um cliente adiar um projeto grande ou um pagamento atrasar-se para tudo se descontrolar temporariamente.
Como sobrevivi?
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- Criei um fundo de emergência antes de dar o salto (idealmente para cobrir 6 meses de despesas)
- Diversifiquei serviços — tradução, criação de conteúdo e workshops complementam-se e equilibram-se
- Estabeleci contratos claros com prazos de pagamento realistas
- Aprendi (ainda estou a aprender, na verdade) a dizer não a projetos mal pagos só porque estou com medo da escassez
- Criei pacotes de serviços recorrentes que me garantem alguma previsibilidade financeira
O paradoxo do tempo: nunca tive tanto e tão pouco
Uma das maiores ironias? Finalmente tenho controlo sobre o meu horário, mas muitas vezes acabo com menos tempo livre do que quando tinha um emprego corporativo.
Como freelancer, não estás apenas a fazer o trabalho criativo — estás também a gerir contas, fazer propostas, networking, marketing, gestão de redes sociais, desenvolvimento profissional contínuo… A lista parece interminável.
Aprendi rapidamente que para cada hora de trabalho “faturável”, existem facilmente duas ou três horas de trabalho “invisível”. E no início, quando ainda estamos a construir processos e templates, esta proporção pode ser ainda mais desequilibrada.
Como estou a gerir isto:
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- Dedico tempo específico para tarefas administrativas (segundas-feiras de manhã são sagradas para este propósito)
- Automatizo o que posso (emails, faturas, social media)
- Terceirizo o que não é a minha competência central ou o que demora demasiado tempo (contabilidade, alguns aspetos técnicos)
- Estabeleço limites claros com clientes sobre disponibilidade
- Agendo tempo “indisponível” no calendário para trabalho profundo e criatividade
Descobertas sobre o mercado português
Uma revelação surpreendente foi entender as peculiaridades do mercado português. Alguns insights que ganhei:
1. A rede de contactos é tudo Em Portugal, as relações pessoais ainda são o motor principal de novos negócios. Um café com um ex-colega trouxe-me mais oportunidades do que meses de marketing digital cuidadosamente planeado.
2. A desvalorização do trabalho criativo é real Deparei-me com inúmeras situações em que o valor do trabalho criativo era fortemente subestimado. “Mas é só escrever uns textos” ou “Traduções? O Google faz isso de graça” são frases que ouvi demasiadas vezes.
A solução tem sido educar potenciais clientes sobre o processo e valor do trabalho criativo, mostrando resultados concretos e focando em clientes que já entendem este valor.
3. Posicionamento e nicho são essenciais Num mercado relativamente pequeno como o português, encontrar um nicho específico fez toda a diferença. Em vez de ser “mais uma tradutora” ou “mais uma copywriter”, posicionar-me na interseção entre tradução criativa, conteúdo estratégico e facilitação de processos criativos permitiu-me destacar.
4. O timing do mercado português Aprendi que existe um “ritmo português” de negócios. Agosto? Praticamente morto. Janeiro? Lento para arrancar. Períodos antes de feriados? Explosão de pedidos urgentes!
Ajustar as expectativas e planeamento a este ritmo sazonal tem sido crucial para manter a sanidade mental.
As ferramentas que ninguém te diz que precisas
Para além das ferramentas técnicas óbvias, descobri que o empreendedorismo criativo exige um conjunto de ferramentas emocionais e mentais que raramente são discutidas:
1. A capacidade de falhar publicamente Lançar serviços que ninguém compra, publicar conteúdo que não ressoa, enviar propostas que são rejeitadas — tudo isto acontece às claras, sem a segurança de uma estrutura corporativa que absorva o impacto. Desenvolver resiliência tornou-se tão importante quanto aprimorar competências técnicas.
2. Disciplina emocional Aprendi a não tomar decisões em dias de insegurança profunda nem em momentos de excitação extrema. Ambos são estados temporários que podem levar a escolhas desalinhadas com objetivos de longo prazo.
3. Uma rede de apoio honesta Precisamos urgentemente de pessoas que nos digam a verdade — não apenas “está incrível!”, mas também “isto precisa de trabalho” ou “estás a subvalorizar-te”.
Onde estou agora e o que vem a seguir
Passados alguns meses nesta aventura, estou num lugar de cativante contradição — simultaneamente mais desafiada e mais realizada do que nunca. Existem ainda dias difíceis, claro, mas há uma satisfação profunda em construir algo que reflete verdadeiramente os meus valores e visão.
O futuro? Continuar a afinar este equilíbrio delicado entre crescimento e sustentabilidade. Expandir a oferta de workshops criativos. Potencialmente colaborar com outros freelancers em projetos maiores.
E principalmente, continuar a partilhar esta jornada — não apenas os highlights para o Instagram, mas também as dúvidas, tropeços e aprendizagens que tornam esta aventura tão profundamente humana.
Se estás a contemplar dar o salto para o empreendedorismo criativo em Portugal, espero que este olhar não-filtrado aos bastidores te tenha dado algumas perspetivas úteis. Não é um caminho fácil, mas a liberdade de criar um negócio que reflete autenticamente quem somos e o que valorizamos? Para mim, vale cada momento de incerteza.
E se já estás neste caminho, saúdo-te com respeito e solidariedade. Estamos juntos nesta montanha-russa magnífica e terrível.